FICHA DE
LEITURA
Referências
bibliográficas
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BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São
Paulo: Martins Fontes, 1993. Introdução a cap. II. p.1 – 85.
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Breve resumo
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Bachelard busca, nessa obra,
estabelecer uma fenomenologia da imaginação, entendendo o surgimento da
imagem poética na imaginação individual e como ela pode, sendo individual,
ter imediata representação para a subjetividade de outros indivíduos.
Ainda na introdução, para
explicar a simplicidade e ingenuidade do surgimento de uma imagem poética, o
autor estabelece uma diferenciação entre alma e espírito. Para ele, a criação
procede dos sentimentos da alma, antes de passar pela avaliação racional do
espírito, que só acontece num segundo momento. Diferencia, ainda – a fim de
compreendermos a ação da imagem poética sobre o receptor – ressonância de
repercussão. Ressonância seria um primeiro momento na recepção da imagem
poética, quando esta atinge as profundezas do nosso ser. Já a repercussão seria
a conseqüência disso, quando nos apropriamos da obra gerando desdobramentos.
Salienta ainda que não
pretende, na obra, analisar todo o processo criativo que resulta no poema
acabado, pois esse precede de uma série de elementos e processos complexos. O
objetivo aqui é trabalhar com o surgimento da imagem poética primeira.
Bachelard detêm-se, então, na
avaliação da casa como espaço do devaneio. Para tal, refere-se à função
primeira da casa como espaço de proteção e explica que, nas lembranças,
realidade e devaneio se fundem. Em seguida, analisa particularidades dos
espaços da casa relacionando com os refúgios da lembrança e da imaginação (a
essa análise dá o nome de topoanálise), concluindo que a função do espaço,
nesse caso, é a de reter o tempo.
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Transcrições de citações mais importantes
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“A imagem poética não está sujeita a um
impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: com a explosão de uma
imagem, o passado longínquo ressoa de ecos e já não vemos em que profundezas
esses ecos vão repercutir e morrer. Em sua novidade, em sua atividade, a
imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Procede de uma ontologia direta. É com essa ontologia
que desejamos trabalhar.” (p.2, l.2, grifo do autor)
“O poeta não me confere o passado de sua
imagem, e no entanto ela se enraíza imediatamente
“Para esclarecer filosoficamente o problema da
imagem poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da imaginação. Esta
seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na
consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem
tomado em sua atualidade.” (p.2, l.32)
“Em sua simplicidade, a imagem não tem
necessidade de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua
expressão, é uma linguagem de criança. Para bem especificar o que pode ser
uma fenomenologia da imagem, para especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário
dizer que a poesia é, mais que uma fenomenologia do espírito, um
fenomenologia da alma.” (p.4, l.21)
“O espírito pode relaxar-se; mas no devaneio
poético a alma está de vigília, sem tensão, repousada e ativa. Para fazer um
poema completo, bem estruturado, será preciso que o espírito se prefigure
“As ressonâncias dispersam-se nos diferentes
planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento
da nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o
falamos, ele é nosso. A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o
ser do poeta é o nosso ser. A multiplicidade das ressonâncias sai então da
unidade de ser da repercussão.” (p.7, l.5)
“É depois da repercussão que podemos
experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso
passado. Mas a imagem atingiu as profundezas antes de emocionar a
superfície.” (p.7, l.31)
“Ao recebermos uma imagem poética nova
sentimos seu valor de intersubjetividade. Sabemos que a repetiremos para
comunicar o nosso entusiasmo. Considerada na transmissão de uma alma para
outra, uma imagem poética foge às pesquisas de causalidade. As doutrinas timidamente
causais, como a psicologia, ou fortemente causais, como a psicanálise, não
podem determinar a ontologia do poético. Nada prepara uma imagem poética: nem
a cultura, no modo literário, nem a percepção, no modo psicológico.” (p.8,
l.27).
“Limitando dessa maneira nossa pesquisa à
imagem poética em sua origem a partir da imaginação pura, deixemos de lado o
problema da composição do poema
como agrupamento de imagens múltiplas. Nessa composição do poema intervêm
elementos psicologicamente complexos que associam a cultura menos ou mais
distante e o ideal literário de um tempo, componentes que uma fenomenologia
completa deveria sem dúvida examinar. Mas um programa tão vasto poderia
prejudicar a pureza das observações fenomenológicas, decididamente elementares,
que queremos apresentar.” (p.9, l.5).
“Em poesia, o não-saber é uma condição prévia;
se há ofício no poeta, é na tarefa subalterna de associar imagens. Mas a vida
da imagem está toda em sua fulgurância, no fato de que a imagem é uma
superação de todos os dados da sensibilidade.” (p.16, l.26)
“O espaço percebido pela imaginação não pode
ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um
espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as
parcialidades da imaginação.” (p.19, l.14).
“[...] não se trata de descrever casas, de
promenorizar-lhes os aspectos pitorescos e de analisar as razões do seu
conforto. É preciso, ao contrário, superar os problemas da descrição – seja
ela objetiva ou subjetiva, isto é, quer se refira a fatos ou a impressões –
para atingir as virtudes primárias, aquelas em que se revela uma adesão
inerente, de certo modo, à função original do habitar. O geógrafo, o
etnógrafo podem descrever os mais variados tipos de habitação. Sobre essa
variedade, o fenomenólogo faz o esforço necessário para compreender o germe
da felicidade central, segura, imediata. Encontrar a concha inicial em toda
moradia, no próprio castelo – eis a tarefa básica do fenomenólogo.” (p.24,
l.3)
“A casa, como o fogo, como a água, nos
permitirá evocar, na seqüência de nossa obra, luzes fugidias de devaneio que
iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua,
memória e imaginação não se deixem dissociar. Ambas trabalham para seu
aprofundamento mútuo. Ambas constituem na ordem dos valores, uma união da lembrança
com a imagem.” (p.25, l.21).
“Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia,
no curso de uma história, na narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as
diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos
dias antigos.” (p.25, l.27).
“Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por
si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas
são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis
dentro de nós.” (p.26, l.16, grifo do autor)
“Nosso objetivo está claro agora: pretendemos
mostrar que a casa é uma das maiores (forças) de integração para os
pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o
princípio de ligação é o devaneio.” (p.26, l.21)
“Logicamente, é graças à casa que um grande
número de nossas lembranças estão guardadas e quando a casa se complica um
pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças
tem refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante
toda a vida, em nossos devaneios. [...] A topoanálise seria então o estudo
psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima. Nesse teatro do
passado que é a memória, o cenário
mantém os personagens em seu papel dominante. Por vezes acreditamos
conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações
nos espaços da estabilidade do ser [...]. Em seus mil alvéolos, o espaço
retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço.” (p.27, l.29)
“Não podemos reviver as durações abolidas. Só
podemos pensá-las, pensa-las na linha de um tempo abstrato privado de
qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos
fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente
permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto
mais bem espacializadas.” (p.28, l.35)
“De que serviria, por exemplo, dar a planta do
aposento que foi realmente o meu
quarto, descrever o quartinho do fundo
de um sótão, dizer que da janela, através de um vão no teto, se via colina?
Só eu, em minhas lembranças de outro século, posso abrir o armário profundo
que guarda ainda, só pra mim, o cheiro único, o cheiro das uvas que secam na
grade. O cheiro da uva! Cheiro-limite, é preciso muita imaginação para
senti-lo. Mas já falei demais sobre ele. Se dissesse mais, o leitor não
abriria, em seu quarto reencontrado, o armário único, o armário com cheiro
único, que assinala uma intimidade. Para evocar os valores de intimidade , é
necessário, paradoxalmente, induzir o leitor ao estado de leitura suspensa. É
no momento em que os olhos do leitor deixam o livro que a evocação de m eu
quarto pode tornar-se um umbral de onirismo para outrem. Então, quando é um
poeta que fala, a alma do leitor repercute, conhece essa repercussão que,
como diz Minkowski, devolver ao ser a energia de uma origem.” (p.32, l.28)
“Os valores de intimidade são tão absorventes
que o leitor já não lê o seu quarto: revê o dele.” (p.33, l.22)
“Mais que um centro de moradia, a casa natal é
um centro de sonhos. Cada um de seus redutos foi um abrigo de devaneio. E o
abrigo não raro particularizou o devaneio. Foi aí que adquirimos hábitos de
devaneio particular.” (p.34, l.18)
“Se não tivesse existido um centro compacto de
devaneios de repouso na casa natal, as circunstâncias tão diferentes que
envolvem a vida verdadeira teriam confundido as lembranças. [...] É no plano
do devaneio, e não no plano dos fatos, que a infância permanece em nós viva e
poeticamente útil. Por essa infância permanente, preservamos a poesia do
passado.” (p.35, l.5)
“Assim, para além de todos os valores
positivos de proteção, na casa natal se estabelecem valores de sonho, últimos
valores que permanecem quando a casa não mais existe. Centros de tédio,
centros de solidão, centros de devaneio, se agrupam para constituir a casa
onírica, mais duradoura que as lembranças dispersas na casa natal.” (p.35,
l.32)
“E não esqueçamos que são esses valores de
sonho que se comunicam poeticamente de alma para alma. A leitura dos poetas é
essencialmente devaneio.” (p.36, l.1)
“Nós nos tornaremos sensíveis a essa dupla
polaridade vertical da casa se nos tornarmos sensíveis à função de habitar a
ponto de fazer dela uma réplica imaginária da função de construir. Os andares
elevados, o sótão, o sonhador os “edifica” e os reedifica bem edificados. Com
os sonhos na altitude clara estamos, convém repetir, na zona racional dos
projetos intelectualizados. Mas, quanto ao porão, o habitante apaixonado
cava-o cada vez mais, tornando ativa sua profundidade. O fato não basta, o
devaneio trabalha. Com relação à terra cavada, os sonhos não têm limite.”
(p.37, l.3)
“Os edifícios, na cidade, têm apenas uma
altura exterior. Os elevadores
destroem os heroísmos da escada. Já não há mérito em morar perto do céu. E o em casa não é mais que uma simples
horizontalidade.“ (p.44, l.30)
“À falta de valores íntimos de verticalidade,
é preciso acrescentar a falta de cosmicidade da casa das grandes cidades. As
casas, ali, já não estão na natureza. As relações de moradia com o espaço
tornam-se artificiais.” (p.45, l.3)
“Na página de Bachelin, a cabana revela-se
como a raiz axial da função de habitar. Ela é a planta humana mais simples,
aquela que não precisa de ramificações para subsistir. É tão simples que não
pertence mais às lembranças, tantas vezes excessivamente carregadas de
imagens. Pertence às lendas.” (p.48, l.34)
“As grandes imagens têm ao mesmo tempo uma
história e uma pré-história. São sempre lembrança e lenda ao mesmo tempo.
Nunca se vive a imagem em primeira instância. Toda grande imagem tem um fundo
onírico insondável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal coloca
cores particulares.” (p.50, l.1)
“Com a cabana, com a luz que vela no horizonte
distante, acabamos de indicar em sua forma mais simplificada a condensação de
intimidade do refúgio.” (p.53, l.13)
“Na literatura, a dialética da casa e do
universo é simples demais. A neve, em particular, aniquila com excessiva
facilidade o mundo exterior. Ela universaliza o universo em uma única
totalidade. Numa palavra, na palavra neve, o universo é expresso e suprimido
para o ser abrigado. [...] No mundo fora da casa, a neve apaga os passos,
embaralha os caminhos, abafa os ruídos, mascara as cores. Sente-se em ação
uma negação cósmica pela brancura universal. O sonhador da casa sabe tudo
isso, sente tudo isso, e pela diminuição do ser do mundo exterior sente um
aumento de intensidade de todos os valores de intimidade.” (p.57, l.16)
“A casa e o universo não são simplesmente dois
espaços justapostos. No reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente
em devaneios opostos.” (p.59, l.24)
“Quando duas imagens singulares, obras de dois
poetas que vivenciam separadamente seu devaneio, se encontram, parece que se
reforçam mutuamente. Essa convergência de duas imagens excepcionais
proporcionam, de certa forma, uma confirmação para a pesquisa fenomenológica.
A imagem perde a sua gratuidade. O livre jogo da imaginação já não é uma
anarquia.” (p.73, l.13)
“Por vezes, a casa do futuro é mais sólida,
mais clara, mais vasta que todas as casas do passado. No oposto da casa
natal, trabalha a imagem da casa
sonhada.” (p.74, l.20)
“Assim, a casa sonhada deve ter tudo. Por mais
amplo que seja seu espaço, ela deve ser uma choupana, um corpo de pomba, um
ninho, uma crisálida. A intimidade tem necessidade do âmago de um ninho.”
(p.78, l.23)
“Devemos falar dos devaneios que acompanham as
atividades domésticas. O que guarda ativamente a casa, o que na casa une o
passado mais próximo e o futuro mais próximo, o que a mantém numa segurança
de ser, é a atividade doméstica. [...] No momento em que acrescentamos um
clarão de consciência ao gesto maquinal. No momento em que fazemos
fenomenologia esfregando um velho móvel, sentimos nascerem, sob o terno
hábito doméstico, impressões novas. A consciência rejuvenesce tudo. Dá aos
atos mais familiares um valor de começo.” (p.79, l.28)
“Toda grande imagem simples revela um estado
de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é “um estado de alma”. Mesmo
reproduzida em seu aspecto exterior, ela fala de uma intimidade.” (p.84,
l.15)
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Comentário pessoal
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Bachelard usa como referência na sua obra a
poesia escrita, a literatura. A imagem poética a que se refere é aquela que
vai originar/constituir um poema. Podemos, no entanto, inferir sua teoria
para toda imagem poética, entendo por poesia toda a criação artística que,
por sua vez, fala de alma para alma.
O autor explica que as memórias não se situam
no tempo, mas
Para o autor, ao tomar contato com uma poesia,
o leitor não pode visualizar a imagem do espaço vivido pelo autor, mas vai
reviver seu próprio espaço vivido no passado através do fenômeno da
repercussão.
Bachelard se utiliza de diversos exemplos de
textos de variados poetas para ilustrar as suas idéias. Além disso, apesar de
visar transmitir concepções claras ao leitor, sua forma de escrita é também
poética.
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Utilização de materialidades no processo criativo
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por Érica Lopes
dez/12