A Poética do Espaço - parte II


Referências
bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Cap. III a X. p.87 – 242. 

Breve resumo
Após a introdução e uma minuciosa avaliação da casa e seus ambientes como espaços do devaneio, Bachelard debruça-se sobre as gavetas, cofres e armários – devaneios da intimidade – partindo então para outros espaços: espaços primitivos, naturais, miniaturizados e contrários.
Com o ninho, nos remete a um espaço primordial de simplicidade e segurança, com a concha, à dialética do pequeno e do grande, do aberto e do fechado. Nos cantos, a imobilidade e segurança, o refúgio. E nos envolve, então, na percepção da imensidão guardada em nós mesmos e nas miniaturas.

Transcrições de citações mais importantes

“Com o tema das gavetas, dos cofres, das fechaduras e dos armários, vamos retomar contato com a insondável reserva dos devaneios da intimidade.” (p.91, l.7)

“Os móveis complexos construídos pelo operário são o testemunho sensível de uma necessidade de segredos, de uma inteligência do esconderijo” (p.94, l.9, grifo do autor)

“O cofre, sobretudo o cofrezinho, sobre o qual temos um domínio mais completo, são objetos que se abrem. Quando o cofre se fecha, é restituído à comunidade dos objetos; toma seu lugar no espaço exterior. Mas ele se abre! Então, esse objeto que se abre é, diria um filósofo matemático, a primeira diferencial da descoberta. [...] Mas no momento em que o cofre se abre não há mais dialética. O exterior é riscado com um traço; tudo é novidade, tudo é surpresa, tudo é desconhecido. O exterior já nada significa. E até, supremo paradoxo, as dimensões do volume não têm m ais sentido porque uma nova dimensão acaba de se abrir: a dimensão da intimidade.” (p.98, l.2, grifo do autor)

“Com o ninho, principalmente com a concha, encontraremos toda uma série de imagens que tentaremos caracterizar como imagens primordiais, como imagens que despertam em nós uma primitividade.” (p.104, l.25)

“O ninho, como toda imagem de repouso, de tranqüilidade, associa-se imediatamente à imagem da casa simples. Da imagem do ninho à imagem da casa, ou vice-versa, as passagens só se podem fazer sob o signo da simplicidade.” (p.110, l. 20, grifo do autor)

“Assim, contemplando o ninho, estamos na origem de uma confiança no mundo, recebemos um aceno de confiança, um apelo à confiança cósmica. O pássaro construiria seu ninho se não tivesse seu instinto de confiança no mundo? Se escutarmos esse apelo, se fizermos desse abrigo precário que é o ninho – paradoxalmente, sem dúvida, mas sob o próprio impulso da imaginação – um refúgio absoluto, voltaremos às fontes da casa onírica. Nossa casa, captada em seu poder de onirismo, é um ninho no mundo. Nela vivemos com uma confiança nativa se de fato participarmos, em nossos sonhos, da segurança da primeira morada. Para vivermos essa confiança tão profundamente integrada em nosso sono, não temos necessidade de enumerar razões materiais de confiança. Tanto o ninho como a casa onírica e tanto a casa onírica como o ninho – se é que estamos na origem de nossos sonhos – não conhecem a hostilidade do mundo.” (p.115, l.15)

“Sobre o tema da concha, a imaginação trabalha também, além da dialética do pequeno e do grande, a dialética do ser livre e do ser acorrentado: e o que não se pode esperar de um ser liberto das correntes!” (p.121, l.35)

“Gostaríamos de ver e temos medo de ver. Eis o limiar de todo conhecimento. Nesse limiar, o interesse ondula, perturba-se, volta.” (p.122, l.10)

“Eis o ponto de partida de nossas reflexões: todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos de recolher-nos em nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa.” (p.145, l.11)

“Mas em primeiro lugar o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a imobilidade. Ele é o local seguro, o local próximo de minha imobilidade. O canto é uma espécie de meia-caixa, metade paredes, metade porta.” (p.146, l.17)

“O filósofo intelectualista que quer conservar a precisão de sentido das palavras, que encara as palavras como as mil ferramentazinhas de um pensamento lúcido, não pode deixar de espantar-se diante das temeridades do poeta. Entretanto, um sincretismo da sensibilidade impede que as palavras se cristalizem em sólidos perfeitos. No sentido central do substantivo aglomeram-se adjetivos inesperados. Um ambiente novo permite que a palavra penetre não só nos pensamentos mas também nos devaneios. A linguagem sonha.” (p.154, l.22)

“Não basta uma dialética platônica do grande e do pequeno para conhecer as virtudes dinâmicas da miniatura. É preciso ultrapassar a lógica para viver o que há de grande no pequeno.” (p.159, l.20)

“O fato de descrever objetivamente um devaneio já é diminuí-lo e interrompe-lo. Quantos sonhos contados objetivamente que nada mais são que onirismo feito pó! Ante uma imagem que sonha, é preciso tomá-la como um convite para continuar o devaneio que a criou.” (p.161, l.6)

“Pegar uma lupa é prestar atenção, mas prestar atenção já não será possuir uma lupa? A atenção, por si só, é uma lente de aumento.” (p.165, l.38)

“Na ampulheta, ele ouviu subitamente a catástrofe do tempo” (p.173, l.30)

“O tique-taque dos nossos relógios é tão grosseiro, tão mecanicamente sincopado que já não temos o ouvido bastante aguçado para escutar o tempo que se escoa” (p.173, l.31)

“De fato, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objeto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além.” (p.189, l.13, grifo do autor)

“A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranqüilo.” (p.190, l.28)

“O espírito vê e revê objetos. A alma encontra no objeto o ninho de uma imensidão.” (p.196, l.2)

“A filosofia madurece-nos com muita rapidez e nos cristaliza num estado de maturidade. Como, então, sem se “desfilosofar”, esperar viver os abalos que o ser recebe das imagens novas, das imagens que são sempre fenômenos da juventude do ser? Quando se está na idade de imaginar, não se sabe dizer como e por que se imagina. Quando se pode dizer como se imagina, já não se imagina. Será preciso, então, desamadurecer.” (p.239, l.5)

“O gorjeio do redondo arredonda o céu em cúpula. E, na paisagem arredondada, tudo parece repousar. O ser redondo propaga a sua redondeza, propaga a paz de toda redondeza.” (p.241, l.11)

Comentário pessoal

Com a metáfora da concha, do caracol, Bachelard nos remete ao processo intrinsecamente dialético da relação com o conhecimento. Como o caracol, que sai mole e vagarosamente da concha sempre levando-a consigo, buscamos e tememos o novo. O conhecido é cômodo, é seguro. O novo é intrigante, sedutor e ameaçador. A resistência é inerente ao processo de construção do conhecimento que causa o desequilíbrio para posteriormente reequilibrar e voltar à concha até um novo ciclo.

“A linguagem sonha”. Com essa frase o autor chama a minha atenção para a possibilidade do brincar também com as palavras, da fuga da rudeza cotidiana associada à fixação no significado estrito de um símbolo escrito. O brincar traz alegria à vida. O brincar com as palavras pode trazer alegria e vida ao impresso no papel sem tirar-lhe a incumbência de comunicar o pretendido. Dura busca de quem aprendeu presa a modelos rígidos, permitir-se a leveza de experimentar o conhecido sob novas formas...

Bachelard propõe constantemente a dialética, a aceitação dos contrários, uma maleabilidade frente às imagens. Sua visão de mundo é aberta ao poético, ao irreal, ao sonho em cada detalhe.

Nesse sentido, do permitir-se olhar o mundo com outros olhos, as concepções do autor vão alinhar-se às do teatro pós-dramático quanto à sua proposta de estranhamento do cotidiano. E, sob esse aspecto, podemos inferir uma proposta política do devaneio poético.

Utilização de materialidades no processo criativo

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por Érica Lopes
abr/13